O Mito Mais Estúpido Sobre Inteligência Artificial

Desmistificando o Consumo de Água da Inteligência Artificial: Uso vs. Consumo

Um dos argumentos mais persistentes e, na minha opinião, mais equivocados contra a Inteligência Artificial é o impacto ambiental devido ao uso de água. Embora existam preocupações válidas sobre a crescente demanda de eletricidade por data centers, o foco excessivo no consumo de água tem gerado manchetes alarmantes.

Artigos frequentemente citam títulos como “IA está acelerando a perda do nosso recurso natural mais escasso” ou “Uma garrafa de água por e-mail: os custos ambientais ocultos do uso de chatbots de IA”. Essas peças costumam focar na quantidade de água que os data centers supostamente “usam” e “consomem” para resfriar os computadores.

No entanto, ao entender o processo real de resfriamento, percebe-se que a situação está longe de ser um grande problema, ou, no mínimo, é muito menos grave do que é pintado.

O Processo de Resfriamento em Data Centers

O resfriamento em data centers geralmente envolve dois sistemas de água interligados:

1. **Loop Fechado Interno:** Existe um circuito fechado de água que remove o calor diretamente dos computadores. Essa água circula em um ciclo contínuo, sendo aquecida pelos chips e depois resfriada em radiadores, antes de retornar para resfriar os chips novamente. Nesta parte do processo, nenhuma água é adicionada ou removida; ela apenas circula.
2. **Sistema de Resfriamento Externo:** Simultaneamente, água externa é bombeada para os radiadores. Ao ser pulverizada sobre esses radiadores, essa água absorve o calor. O que ocorre em seguida é crucial: parte dessa água aquece e evapora, e essa **mudança de fase** retira ainda mais calor do circuito de resfriamento interno.

A água que está sendo efetivamente “consumida”, conforme apontam os artigos, é apenas aquela que se transforma em vapor d’água limpa e retorna para a atmosfera.

Entendendo “Uso” vs. “Consumo”

Para analisar essa questão de forma justa, é essencial entender dois termos técnicos frequentemente mal utilizados nessas discussões: “uso” (ou retirada) e “consumo”.

* **Uso da Água (Water Use/Withdrawal):** Refere-se à quantidade total de água retirada de sua fonte para ser utilizada. Medidas de uso avaliam o nível de demanda de setores industriais, agrícolas e domésticos. Por exemplo, uma fábrica que retira 10.000 galões de água por dia para resfriamento, mesmo que devolva 95% ao lençol freático, *usou* os 10.000 galões para operar naquele período.
* **Consumo de Água (Water Consumption):** É a porção da água usada que *não* é devolvida à fonte original após a retirada. O consumo ocorre quando a água é perdida para a atmosfera por evaporação ou incorporada permanentemente a um produto, como um vegetal, e não está mais disponível para reutilização imediata.

Argumentar sobre o uso de água por IA é, na minha visão, falho, pois o uso inclui a água que é devolvida à fonte original. Seria análogo a pegar uma chave de fenda da sua caixa de ferramentas, usá-la e devolvê-la, e então alegar que você “gastou” aquela chave de fenda, ou que, se a usar novamente, gastou duas chaves de fenda.

Embora haja alguma lógica no debate sobre o **consumo**, a crítica baseada apenas no **uso** é, essencialmente, sem fundamento técnico.

A Diferença entre Consumo e Uso em Números

A maioria dos artigos, felizmente, foca no consumo, embora eu ainda o considere um ponto menor. É importante diferenciar o consumo de água de um data center daquele feito por seres humanos. Quando falamos de uma pessoa consumindo água, geralmente imaginamos beber ou usá-la de forma que ela precise ser tratada após ir para o ralo, ou, no pior cenário, ser despejada em um rio poluindo-o.

No contexto da IA, o consumo é majoritariamente a evaporação da água limpa que volta para o ciclo hidrológico como vapor. Em alguns casos, a água pode ser desviada de um rio para passar pelos radiadores e ser devolvida ao rio ligeiramente mais quente, o que tecnicamente ainda não seria um consumo, pois retorna à fonte.

Os dados projetados para 2027 mostram que a **retirada global anual** de água por data centers e IA pode chegar a 4,2 a 6,6 bilhões de metros cúbicos. Parece muito, mas o **consumo real** (a água perdida) é de apenas cerca de 1/10 disso: 0,38 a 0,6 bilhão de metros cúbicos, ou aproximadamente 100 a 160 bilhões de galões.

Ao focar apenas no uso (retirada), algumas análises tornam o cenário dez vezes pior do que a realidade do consumo efetivo.

Comparando com Outros Desperdícios

Para contextualizar esses 160 bilhões de galões de consumo projetado para 2027:

* **Vazamentos em Infraestrutura:** Um estudo recente estimou que o **desperdício global anual** de água proveniente de vazamentos em tubulações é de impressionantes 126 bilhões de metros cúbicos. A projeção de uso total da IA para 2027 é menor que isso.
* **Vazamentos nos EUA e Canadá:** Apenas nos EUA e Canadá, são desperdiçados 14,8 bilhões de metros cúbicos de “água não faturada” (que vaza antes de chegar ao consumidor). E isso sem contar vazamentos em casas, quintais ou torneiras deixadas abertas.
* **Pecuária:** Comparando com o consumo de água na agricultura, apenas a indústria de gado de corte nos EUA (dados de 2014-2016) consumiu cerca de 34.645 bilhões de galões por ano. Este número é comparável ao desperdício anual de água por vazamentos em tubulações.

Se não estamos em pânico sobre a quantidade de água literal desperdiçada por vazamentos ou a quantidade usada pela agricultura (e lembre-se que a pecuária é apenas um setor da agricultura), não há razão para pânico exagerado sobre o consumo da IA.

O Futuro é de Baixo Consumo de Água

Há boas notícias, pois os futuros data centers não precisarão enfrentar esse problema da mesma forma:

* **Microsoft:** Anunciou que todos os novos data centers em construção a partir de agosto de 2024 usarão um **design de circuito totalmente fechado e com zero evaporação**.
* **Google:** Estabeleceu a meta de reabastecer 120% da água doce que consome até 2030. Isso significa devolver mais água doce do que a consumida, por exemplo, utilizando água não potável para resfriamento e tratando qualquer resíduo antes de devolvê-lo à bacia hidrográfica. Cerca de 25% dos data centers da Google já praticam esse reabastecimento.

Diante dessas inovações e da perspectiva correta sobre o que realmente constitui o consumo de água, é difícil justificar a preocupação excessiva com o impacto hídrico da Inteligência Artificial.

Perguntas Frequentes

  • O que é a principal diferença técnica entre “uso” e “consumo” de água?
    Uso refere-se à retirada total da fonte para operação, enquanto consumo é a parte que não é devolvida à fonte original, como por evaporação ou incorporação em produtos.
  • Por que o debate sobre o “uso” de água em IA é considerado falho?
    Porque o uso inclui a água que é imediatamente reciclada em um loop fechado e devolvida à fonte, não representando uma perda real para o sistema hídrico local.
  • Qual a estimativa de consumo real de água pela IA em 2027, em comparação com a retirada total?
    O consumo real (perdido) é projetado para ser cerca de 1/10 da retirada total, ficando entre 0,38 a 0,6 bilhão de metros cúbicos.
  • É possível que data centers futuros não consumam água por evaporação?
    Sim, algumas empresas, como a Microsoft, estão desenvolvendo designs de circuito totalmente fechados com zero evaporação.
  • Qual a comparação do consumo de água da IA com o desperdício por vazamentos em tubulações?
    O consumo projetado da IA é significativamente menor que o volume anual de água desperdiçada globalmente por vazamentos em infraestrutura.